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NOTA TÉCINICA SOBRE A SUSPENSÃO DOS PROCESSOS TRABALHISTAS PELA LIMINAR NA ADC 58-DF (IPCA x TR)

07.07.2020

Segundo a famosa expressão cunhada por Chiovenda: “na medida do que for praticamente possível, o processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter”.
 
A utilização do processo e o reclamo à atividade jurisdicional não deve proporcionar prejuízo ao credor e nem beneficiar o devedor, com um ganho derivado da demora da prestação jurisdicional coadjuvada com a inflação do período que decorreu entre o inadimplemento e a satisfação da prestação jurisdicional.
 
Atento a essa situação, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs 4.357 e 4.425, em controle concentrado de constitucionalidade, declarou a inconstitucionalidade da utilização do índice de remuneração da caderneta de poupança (TR) como critério de correção monetária por violação ao direito fundamental de propriedade e ao princípio da isonomia, na medida que este referencial é manifestamente incapaz de preservar o valor real do crédito de que é titular o cidadão. Posteriormente, no julgamento do recurso extraordinário nº 870.947, o STF ainda decidiu não modular a aplicação do IPCA.
 
Em compasso e observância ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, o Plenário do Tribunal Superior do Trabalho, a partir da arguição de inconstitucionalidade (processo TST nº 0000479-60-2011.5.04.0231), acompanhou o entendimento do STF e declarou a inconstitucionalidade do art. 39, caput e §1º, da lei 8.177/91 que estabelecia a TR (taxa referencial) como fator de correção monetária dos créditos trabalhistas - a despeito de que, apenas, de janeiro/2015 a maio/2020, a TR acumularia uma variação de 4,37% e a inflação medida pelo IPCA-e estaria em 31,33%.
 
O que levou a instauração perante o STF, da Reclamação nº 22.012, sob o argumento de que o Tribunal Superior do Trabalho não poderia por arrastamento adotar como fundamento a ratio deciendi da decisão do STF para declarar inconstitucional dispositivo legal que, igualmente, aplicava a TR ao invés do IPCA. A referida Reclamação foi julgada improcedente, restando autorizado pelo STF o entendimento e o procedimento adotado pelo Plenário do TST.
 
No dia 15.06.2020, novamente, o Plenário do TST (no processo ArgInc nº 0024059-68.2017.5.24.0000) já havia formado larga maioria para declarar a inconstitucionalidade do §7º do art. 879 da CLT que, justamente, reproduzia o conteúdo do caput e §1º do art. 39 da lei nº 8.177/91, estabelecendo a aplicação da TR para atualização dos créditos trabalhistas.
 
Ocorre que, por decisão liminar monocrática, na ADC nº 58, em aparente contradição ao decidido pelo STF, inclusive na Reclamação nº 22.012, se suspendeu não só o referido julgamento do Plenário do TST, mas, os julgamentos de todos os processos na Justiça do Trabalho que envolvem a temática da correção monetária pela aplicação do IPCA-E ao invés da TR.
 
Com o julgamento da medida cautelar proposta no agravo regimental interposto pela Procuradoria Geral da República, ficou esclarecido que a liminar não impediria o regular andamento de processos judiciais, ou seja, a matéria controvertida continua passível de apreciação pelo juiz, tanto na fase de conhecimento quanto na fase de execução, e, tampouco impede a produção de atos de execução, adjudicação e transferência patrimonial quando em cumprimento de coisa julgada e da parcela do valor das condenações que se afigura incontroversa pela aplicação de qualquer dos dois índices de correção monetária.
 
O efeito dessa liminar suspende a resolução definitiva da questão no âmbito de um dos ramos do Poder Judiciário, justamente, aquele que o Constituinte Originário cuidou de destacar em separado, na organicidade da sua estrutura nuclear Judiciária, que protegeria os diretos sociais de natureza fundamentais, os direitos trabalhistas.
 
Os direitos trabalhistas sugiram a partir dos grandes compromissos históricos da modernidade e da entrada na pós-modernidade: o compromisso da democracia moderna e o compromisso do Estado do Bem Estar Social.
 
Os direitos trabalhistas garantem emancipação social em face do mercado, com um padrão civilizatório no jogo econômico, que poderá levar a uma vida decente ao tratar o contrato de trabalho como relação entre sujeitos, impedindo que se estabeleça uma relação com o outro que não seja o transformando-o em objeto.
 
Por isso, os direitos trabalhistas são categoria integrante dos Direitos Humanos, aliás, especialmente, talhados para cuidar do ser humano.
 
Os direitos trabalhistas possibilitam distribuição e capacitação aos trabalhadores numa sociedade que não dominam, nem política e nem ideologicamente.
 
O direto do trabalho propicia, com isso, inclusão social.  E inclusão no contrato social é o sentido da própria cidadania e da democracia, ou seja, de uma sociedade justa e sadia. São garantidores da própria democracia e do Estado Democrático de Direito.
 
No seu preâmbulo e no seu artigo 1º, a C.F. do Brasil, estabelece a instituição de um Estado Democrático que tem por objetivo assegurar direitos sociais, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos.
 
Os direitos trabalhistas, inseridos a partir do art. 7º da C.F, foram os únicos direitos sociais enumerados no art. 6º, tratados pelo Constituinte Originário individualizadamente, tendo um capítulo específico inserido no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, indicando como essenciais na concretização dos valores da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
 
Com essa especificidade o Constituinte Originário aponta a centralidade dos direitos trabalhistas dentre os valores dominantes estruturantes do Estado de Direito.
 
Claramente, há uma prevalência valorizativa dos denominados direitos e garantias fundamentais, por conta do seu significado constitutivo do Estado Democrático de Direito. Por conta disso e serem de ordem pública, os créditos trabalhistas tem preferência sobre todos os créditos, até mesmo de natureza tributária (art. 186 do CTN).
 
A correção monetária nada mais é que mera técnica de manutenção do poder aquisitivo do valor devido, ou técnica destinada à reposição do poder de compra (Dinamarco). Sua aplicação deve ser encarada para realização da ideia que o processo deve proporcionar a quem tem direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter (Chiovenda).
 
A correção monetária é indispensável à manutenção da comutatividade, do equilíbrio e da função sócio-econômico-financeira dos contratos, com a necessária integridade patrimonial das pessoas.
 
A inflação não recomposta pela correção monetária traz um empobrecimento aos credores e uma transferência de renda e um enriquecimento sem causa para os devedores, como um prêmio pelo descumprimento da lei e dos contratos.
 
A dívida é pré-existente a sentença declaratória-condenatória que não é constitutiva do direito material.
 
Antes mesmo da lei 6.899/81, no tocante as dívidas de valor (como as dívidas trabalhistas, alimentos, enriquecimento sem causa, indenizações por conta de ato ilícito), pela sua própria natureza, cuja prestação corresponde ao reestabelecimento de uma posição patrimonial do credor, com força interna para propiciar a evolução de sua expressão monetária ao longo do tempo em face da inflação intercorrente, os tribunais já autorizavam a revalorização, mesmo sem lei e pedido, pelo princípio da revalorização de toda a dívida do devedor moroso.
 
O fato é que a correção monetária não é um plus que se acresça à dívida, mas a própria dívida, em sua expressão atualizada. Correção monetária nada acresce à dívida, mas é a própria dívida em sua manifestação atualizada, de modo que a moeda, nominalmente expressa no momento do ajuste da dívida, tenha o mesmo poder aquisitivo, quando do adimplemento. (Ada Grinover).
 
A correção monetária não é uma lei de caráter e finalidade processuais, ela é tipicamente uma lei de direito material, conquanto feita para os que do processo precisam valer-se. Toma o processo e sua pendência como fatos jurídicos constitutivos do direito, que atribui ao demandante, de receber o crédito corrigido e não mais na expressão monetária original. (Dinamarco).
 
Tudo isso para que a necessidade de servir-se do processo para obter razão não reverta em prejuízo para quem tem razão e benefício para quem não a tem, pois, a correção monetária do crédito pela inflação não constitui sanção à mora e nem punição ao devedor; esse último apenas deixa de ganhar e se enriquecer indevidamente quando é levado a suportar um débito atualizado à nova realidade monetária, posto que, de outro modo, não se faria justiça, não sendo legítimo punir quem tem razão pela demora do processo e pela desvalorização monetária oriunda da inflação. (Dinamarco).
 
Mostra-se fora da realidade, afasta-se do valor da justiça e colide com o critério de razoabilidade que preside todo ordenamento jurídico negar a real e verdadeira expressão da atualização, adotando-se um critério que não corresponde e está desapegado da realidade inflacionária, como no caso da adoção da TR ao invés do IPCA-E.
 
Na realidade, está acolhendo apenas em parte a pretensão na medida que priva o credor de parte da utilidade sócio-econômica que o valor da pretensão poderia lhe propiciar se o direito tivesse sido observado pelo devedor.
 
Tal entendimento é manifestamente inconstitucional na medida que viola o inciso XXII do art. 5º da C.F. ao não reestabelecer a reparação integral, impondo de maneira desproporcional sacrifício desmesurado ao direito fundamental da propriedade.
 
Ainda é inconstitucional, pois, viola o princípio da isonomia (caput e inciso I do art. 5º da C.F.) posto que nenhum outro sistema processual estabelece essa perda patrimonial no acesso à Justiça, especialmente, considerando que o crédito trabalhista por ser estruturante do Estado Democrático, tratado na Constituição como direito e garantia fundamental e cláusula pétrea é de ordem pública.
 
Tais direitos constitucionais estarão sendo nulificados pelo Judiciário caso adote uma posição dissociada da realidade, ao não considerar uma realidade inflacionária que está diante dos sentidos.
 
Afinal quem irá cumprir direitos que não tem correção monetária pela inflação? Como corolário disso, tem-se que os recolhimentos fiscais e previdenciários que incidem sobre os créditos trabalhistas e as condenações judiciais, igualmente, restariam descumpridos e desatualizados, em claro prejuízo ao equilíbrio fiscal e às contas da previdência social.
 
Destaque-se a gravidade do afastamento dos reais índices inflacionários da correção monetária trabalhista, em manifesta desvantagem com créditos de natureza meramente quirografária. Isto porque, nos direitos trabalhistas, embora na sua maioria, se constituam em obrigação positiva, liquida e a termo, a incidência dos juros de mora só se dá a partir da distribuição da ação (art. 883 da CLT), bem diferente do que ocorre com o crédito civil, cujo o inadimplemento desse tipo de obrigação, constitui de pleno direito em mora o devedor civil, que passa a se sujeitar a correção monetária pelo IPCA e, ainda, juros de mora de 1% desde o vencimento da obrigação (art. 397 do CCB).
 
Na hora do devedor escolher se pagará o crédito com ou sem correção monetária, com ou sem juros de mora a partir do inadimplemento, qual se imagina será a opção?
 
Sendo que, para garantia do valor real do crédito civil, o § único do art. 404 do Código Civil, ainda, estabelece: “Provado que os juros de mora não cobrem o prejuízo e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.”
 
As normas legais relativas à garantia patrimonial, como a correção monetária, são regras de direito material, ou normas bifrontes (direito processual material) que se exteriorizam para fora do processo e dizem respeito à vida das pessoas no plano material e ao próprio direito de propriedade (inciso XXII do art. 5º da C.F).
 
A aplicação de regra que elimine ou restrinja a garantia patrimonial diante da evolução inflacionária compromete e atinge o próprio direito de acesso à justiça (inciso XXXV do art. 5º da C.F.), gerando o cancelamento de direitos materiais do trabalhador protegidos constitucionalmente (art. 7º da C.F) e o direito de propriedade (inciso XXII do art. 5º da C.F.).
 
O Estado Democrático de Direito estabelece que o respeito ao outro é constitutivo da própria democracia.
 
Numa sociedade democrática, não há espaço para que se autorize a uma das partes em face da outra, determinar unilateralmente suas próprias opções e ações segundo seus próprios interesses e valores.
 
Na pandemia constatou-se que a economia de mercado, mesmo numa sociedade tecnológica e robotizada, não funciona sem os trabalhadores, afora, revelados às escancaras os problemas decorrentes da desigualdade social exigindo, mais do que nunca, a primazia dos princípios da solidariedade social e da reconstrução da sociedade de compromissos com a équa distribuição de ônus.
 
Jamais serão alcançados tais objetivos ao se violar o direito de propriedade e o verdadeiro acesso à ordem jurídica justa, afastando-se a aplicação do IPCA-E da atualização dos créditos trabalhistas.
 
Cabe ao jurista descortinar verdades ocultas, romper a muralha atrás da qual se esconde alguma coisa que sempre esteve lá; para operar o mundo do direito e do processo é preciso entender como a realidade opera, a revelar as causas estruturais que os sinais e falas aparentes só evidenciam por distorção.
 
Não se pode esquecer que o processo atinge diretamente a vida e a felicidade das pessoas, sendo essencial que aqueles que sofrem descubram as causas sociais e se tornem conscientes da origem da sua felicidade ou infelicidade.
 
Cabe ao Plenário do Supremo Tribunal Federal resolver a matéria, com a máxima urgência, em nome da segurança jurídica.
 
Jorge Pinheiro Castelo
Presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/SP
 
José Francisco Siqueira Neto
Presidente da Comissão de Direito Sindical da OAB/SP
 
Mauro de Azevedo Menezes
Membro da Comissão Nacional de Direitos Sociais do Conselho Federal da OAB.
 
Antônio Rodrigues de Freitas
Coordenador da área de Direito Internacional da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/SP
 
Adriana Calvo
Coordenadora da área de Direito Individual da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/SP
 
Túlio Tayano Afonso
Coordenador da área de Direito Coletivo da Comissão de Direito do Trabalho da OAB