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10.10.2018
A abertura ao capital estrangeiro na oferta de serviços à saúde e os impactos causados ao Sistema Único de Saúde
A Lei n.º 8.080/90 dispõe sobre condições para promoção, proteção e recuperação da saúde e organização e funcionamento dos serviços correspondentes, além de tratar de normas sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) e os serviços privados de assistência à saúde.
Em 19 de janeiro de 2015, a então Presidente da República Dilma Rousseff sancionou a Lei n.º 13.097 que, entre outras matérias, alterou a supracitada Lei n.º 8.080/90 para permitir expressamente a abertura ao capital estrangeiro na oferta de serviços à saúde, com a participação direta e indireta, inclusive o controle de empresas ou de capital estrangeiro em algumas atividades da assistência e de apoio à assistência à saúde.
A primeira alteração modificou a essência do artigo 23 da Lei n.º 8.080/90. Originalmente, esse dispositivo vedava “a participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros na assistência à saúde, salvo através de doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos”. Ainda, os parágrafos do artigo 23 tornavam obrigatória a autorização do órgão de direção nacional do Sistema Único de Saúde, submetendo-se a seu controle as atividades que fossem desenvolvidas e os instrumentos que fossem firmados, bem como afastavam da vedação os serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social.
Com as alterações trazidas pela Lei n.º 13.097/2015, passou-se a admitir a participação de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde nos seguintes casos: I - doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos; II - pessoas jurídicas destinadas a instalar, operacionalizar ou explorar: a) hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada; e b) ações e pesquisas de planejamento familiar; III - serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social; e IV - demais casos previstos em legislação específica.
A mudança legislativa trouxe também a inclusão do artigo 53-A à Lei n.º 8.080/90, o qual dispõe que “na qualidade de ações e serviços de saúde, as atividades de apoio à assistência à saúde são aquelas desenvolvidas pelos laboratórios de genética humana, produção e fornecimento de medicamentos e produtos para saúde, laboratórios de análises clínicas, anatomia patológica e de diagnóstico por imagem e são livres à participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros.”
É importante registrar que, até a promulgação da Lei 13.097/2015, a participação de empresas e capital estrangeiro em saúde era permitida apenas em hipóteses muito restritas, como planos privados de assistência à saúde. Com a edição da nova norma, houve a completa abertura de todos os setores das atividades de assistência à saúde às empresas e ao capital estrangeiro, em flagrante violação ao art. 199, § 3º, da CF.
De acordo com o Projeto de Lei n.º 1.721/2015[1] que visa restabelecer a proibição da participação do capital estrangeiro na assistência à saúde, salvo em situações especiais, tem-se que modificações trazidas pela Lei 13.097/2015 podem gerar os seguintes efeitos negativos para a assistência à saúde:
a) quebra da universalidade, consolidando o sentido da mercantilização da saúde e, de quebra, aprofundando a “dupla porta” na saúde, onde quem pode pagar terá acesso facilitado e mais ágil e quem não pode estará relegado à condição de cidadão de segunda classe;
b) redução da capacidade de os gestores do SUS, nos vários níveis da federação, estabelecerem diretrizes de atenção, o que seria acentuado pela exclusão do dispositivo que previa a autorização e controle do SUS nas atividades resultantes da atuação do capital estrangeiro na assistência à saúde;
c) dificuldades para o desenvolvimento do setor privado nacional na área de assistência à saúde, caso conglomerados internacionais adquiram numerosos serviços de saúde e passem a estabelecer os padrões de atenção, e, até de preços praticados;
d) redução na qualidade da atenção à população, diante da falta de controle pelo setor público, em função de estratégias que maximizam o lucro, decididas por investidores externos, sem compromisso com o bem-estar da sociedade brasileira, o que afetaria a governança nacional para prover adequados serviços de saúde à população;
e) drenagem de profissionais da saúde que atuam no setor público para o setor privado, num contexto em que já há carência de recursos humanos da saúde no SUS; e
f) iniquidade na distribuição de recursos para saúde, considerando que o setor privado da saúde tem recebido vultosos subsídios relacionados à renúncia fiscal (imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas); pois, na prática, poderíamos chegar a um cenário em que boa parte desses subsídios acabasse por favorecer o capital estrangeiro.
A Constituição Federal, de forma extremamente correta, incluiu em seu texto intensas restrições no que se refere à participação de capital estrangeiro na saúde do Brasil, permitindo-a apenas nos casos expressamente previstos em lei. Neste sentido, a entrada de empresas e capital estrangeiro no sistema de saúde brasileiro seria a exceção. Para o Relator do Projeto de Lei acima citado, esta preocupação do Poder Constituinte Originário é muito relevante, “uma vez que interesses estrangeiros podem não estar alinhados com a real promoção da saúde do povo brasileiro”. Conclui afirmando que organizações externas podem vir para o Brasil com estratégias que só são adequadas para outros contextos, e que não consideram a nossa realidade, além do fato de que, inevitavelmente, haveria o risco de intervenções governamentais ou ideológicas estrangeiras, de forma velada, em nosso território.
Ao ser promulgada em 1990, a Lei nº 8.080 manteve a rigidez da norma constitucional, vedando a participação de capital estrangeiro aos organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, às entidades de cooperação técnica, e às de financiamento e empréstimos. Além disso, trouxe a obrigatoriedade de autorização prévia e controle pela direção nacional do Sistema Único de Saúde, conforme já afirmado. Em 2015, contudo, com a edição da Lei nº 13.097, essa estrutura restritiva foi radicalmente modificada, aumentando a possibilidade de investimentos e controle do capital estrangeiro sobre instituições de saúde no Brasil.
Na prática, a mudança legislativa tornou regra o que a Constituição Federal de 1988 tratava como exceção, tendo em vista que a Lei 13.097/2015, utilizando-se da “permissão” dada pela CF para regular as exceções, esvaziou a norma constitucional em sua quase totalidade e autorizou a participação do capital estrangeiro em praticamente todas as hipóteses de prestação de serviços de saúde. Esse fato, por si só, contraria a lógica definida pelo legislador constituinte originário e revela a incompatibilidade entre a alteração legislativa e texto do artigo 199, § 3º, da CF.
Ao possibilitar, quase que irrestritamente, a participação do capital estrangeiro nos serviços de saúde, incluindo-se a permissão de controlar hospitais filantrópicos, a norma coloca em grave risco a estrutura do SUS. Torna-se possível, por exemplo, que o mesmo grupo econômico controlador de operadoras de saúde suplementar seja também gestor de entidades hospitalares que prestem serviço ao Sistema Único de Saúde. Ora, é evidente que a precarização do sistema público tende a favorecer a busca dos usuários pelo sistema de saúde suplementar, o que demonstra a existência de interesses completamente opostos na participação e controle de ambos pela mesma empresa. Desta forma, tem-se que as alterações feitas na Lei nº 8.080/90, trazem um risco de intervenção indesejada de capital estrangeiro e têm potencial para desestruturar a política de saúde em nosso País.
A norma constitucional trata o direito à saúde como direito social, que integra o contexto dos direitos fundamentais, e serviço de relevância pública de dever do Estado, definindo os princípios e as diretrizes de organização do Sistema Único de Saúde. A força cogente da legislação que trata do direito à saúde está em sua base principiológica, com status constitucional. Com base fixada nos artigos 196 e seguintes da CF/88, é garantido ao cidadão o acesso aos serviços de saúde de forma universal e igualitária. A Lei n.º 8.080/90, em seu artigo 7º, organiza os serviços de saúde no território nacional de forma descentralizada, regionalizada, hierarquizada e resolutiva. Assegura também a participação da sociedade no contexto das definições das políticas públicas de saúde.
Nesse contexto, o óbice à participação do capital estrangeiro na saúde, como regra, é justificado pela construção e manutenção do referido sistema universal, integral e equitativo de saúde, fundamentado na ideia da saúde não como mercadoria, mas como um direito fundamental constitucionalmente previsto. A vedação até então existente impedia a exploração da saúde por empresas estrangeiras com escopo exclusivamente lucrativo, mas permitia a participação do capital estrangeiro, em caráter excepcional, quando necessária ao desenvolvimento de ações e investimentos em serviços de saúde.
Mario Scheffer[2], ao tratar sobre os potenciais impactos do capital estrangeiro no Sistema Único de Saúde, afirmou que a abertura indistinta e abrangente da saúde ao capital privado estrangeiro pode conduzir ao caminho das iniquidades geradas pela comoditização da saúde, transmudando o direito fundamental em mercadoria. Para o autor, “Com volatilidade e vocação especulativa, investimentos estrangeiros escolherão leitos, exames e procedimentos que geram altos retornos financeiros, principalmente serviços baseados em valores e preferências particulares, e que praticam a seleção adversa, afastando-se do atendimento a populações que vivem em áreas distantes de recursos assistenciais, do atendimento a idosos, crônicos graves, portadores de transtornos mentais e outros pacientes que demandam atenção contínua. O sistema universal, o sistema único para pobres e ricos, baseado na saúde como direito, na redistribuição da riqueza, financiado por toda a sociedade por meio de impostos e contribuições sociais, cede, assim, espaço ao sistema segmentado, incapaz de assegurar o acesso a todos os níveis de atenção, em todas as regiões, inclusive nos vazios sanitários e para populações vulneráveis e negligenciadas, onde e para quem o setor privado não tem interesse em ofertar serviços.
Conforme declarado pela Ministra Carmen Lúcia[3] ao julgar demanda que envolve a matéria, a tutela do direito fundamental à saúde do cidadão brasileiro é urgente, a segurança e a previsão dos usuários dos planos de saúde quanto a seus direitos, também. Para a Ministra, “Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro”. Prossegue em seus fundamentos no seguinte sentido, in verbis:
Direitos conquistados não podem ser retrocedidos sequer instabilizados, como pretendeu demonstrar a entidade autora da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental. Por isso o cuidado jurídico com o tema relativo à saúde é objeto de lei, quer dizer, norma decorrente do devido processo legislativo.
No Estado democrático de direito, somente com ampla discussão na sociedade, propiciada pelo processo público e amplo debate, permite que não se transformem em atos de mercancia o que o sistema constitucional vigente acolhe como direito fundamental e imprescindível à existência digna.
A plausibilidade jurídica dos argumentos apresentados na inicial, pautada em fundamentos constitucionais sensíveis à densificação desse direito, recomendam a atenção para inegável cenário de instabilidade jurídica com o incremento da judicialização da matéria.
Anote-se também a inquietude dos milhões de usuários de planos de saúde, muitos deles em estado de vulnerabilidade e inegável hipossuficiência, que, surpreendidos ou, melhor, sobressaltados com as novas regras, não discutidas em processo legislativo público e participativo, como próprio da feitura das leis, veem-se diante de condição imprecisa e em condição de incerteza quanto a seus direitos."
Diante de todo o exposto, é imprescindível que a participação das empresas e do capital estrangeiro deva ser objeto de intensa regulação e fiscalização, de modo a assegurar a qualidade dos serviços prestados e a observância às diretrizes do SUS, bem como que sejam sempre verificados os impactos decorrentes da concentração do mercado, a fim de que o interesse público seja prioridade em relação ao interesse privado, evitando-se a desigualdade no acesso e na utilização dos serviços de saúde pela população.
Evidencia-se, por fim, que a alteração trazida pela Lei n.º 13.097/2015 viola a literalidade dos artigos 196, 197 e 198 e 199, §3º, todos da CF/88, por afastar os efeitos da regra constitucional de vedação da participação das empresas e do capital estrangeiro na área da saúde, salvo hipóteses definidas em lei, e também por caracterizar potencial risco de fragilização do Sistema Único de Saúde, com impactos nos princípios de acesso universal e igualitário à saúde.
* Nathália Monici é Advogada do Escritório Nathália Monici Advocacia; Especializanda em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito; Especializanda em Direitos Sociais, Ambiental e do Consumidor pelo Centro Universitário de Brasília - UNICEUB; Capacitada em Gestão e Direito à Saúde pelo Instituto SAT Educacional/Conselho Federal OAB; Membro-fundadora da Associação Brasileira de Advogados em Saúde; Integrante do Instituto Jurídico BIOMEDS e Membro do Fórum Nacional Médico e Jurídico de Defesa do SUS. Contatos: (61) 9 9184-4667 econtato@moniciadvocacia.adv.br. Site: www.moniciadvocacia.adv.br